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quinta-feira, 9 de março de 2006

Uísque e sopa de lagosta

Um jantar com Gabriel García Márquez no dia de seus 79 anos

Omero Ciai, do El País, em Cartagena, Colômbia

Há quatro coisas que Gabriel García Márquez ama de verdade. Uísque, mas só de malte e bem envelhecido; beisebol; música para dançar - bolero e rumba; e a diplomacia secreta.

Assim que se levanta da mesa, ao fim do jantar pelo seu aniversário - "é um dia como outro qualquer, nada de bolos" -, olha para o copo de uísque pela metade e diz: "Lhe dou de presente a metade de minhas riquezas, mas se soubesse desde o início que você era jornalista não teria conversado com você nem por um instante."

E acrescenta: "Fui jornalista durante toda a vida e sei como trabalhamos: depressa demais. É preciso mais tempo para fazer bem as coisas. Nunca é suficiente".

Estamos em um restaurante chamado La Langosta, fora da muralha de Cartagena, a alguns quilômetros do velho centro colonial dessa cidade do Caribe colombiano. É um lugar um pouco cafona, instalado numa antiga mansão com um amplo jardim e bastante afastada, longe da rua.

Foi escolhido por Mercedes Barcha, a mulher de Márquez, para evitar que o aniversário do marido se transformasse numa festa descontrolada. É Mercedes quem decide quem pode se aproximar dele, o que deve comer, quanto pode beber, aonde pode ir.

Ele se queixa um pouco - "finalmente pude comer uma sopa de lagosta; se você for comer em minha casa só tem arroz branco" -, mas aceita de boa vontade o amor obsessivo que cuida dele e o conserva com saúde.

Do jantar participam só familiares: seu irmão Jaime com a mulher e uma filha e alguns amigos - o ator italiano Silvio Basile, que chegou à Colômbia em 1968 para filmar "Queimada" com Pontecorvo e ficou -, um ex-prefeito e os responsáveis pela escola de jornalismo que o prêmio Nobel fundou em Cartagena.

Márquez está um pouco ofendido porque um jornalista escreveu que "tem a mão fria como um moribundo". "Sinta. Tenho a mão fria?" Obviamente não. Ele havia feito uma metáfora com o beisebol. O lançador no beisebol deve ter sempre a mão quente, o que significa treinada, pronta para quando for lançar, e por isso movimenta continuamente o braço, fazendo-o girar. Para um escritor é a mesma coisa - diz Márquez -, deve ter a mão quente, treinada.

Ele agora se sente um pouco destreinado. À épica Macondo de "Cem Anos de Solidão", quer dizer, Aracataca, onde nasceu em 6 de março há 79 anos, voltou em segredo há alguns anos e banhou-se no riacho das "pedras grandes como ovos de dinossauros".

Mas hoje não poderia ir. Por um lado - explica - porque há riscos para sua segurança. Aracataca fica a quatro horas de carro de Cartagena, no interior do país. Zona de guerrilha. Depois porque - o homem é supersticioso - não quer dar a impressão de estar "voltando sobre seus passos", como alguém que sente a morte próxima.

Na família costuma-se contar uma história sobre o riacho de Aracataca, que Jaime, o irmão, explica. Gabriel Eligio García, o telegrafista, e Luisa Márquez - mais conhecida na família como Úrsula dos Cem Anos - tiveram 11 filhos. Os primeiros, como Gabo, nasceram em Aracataca. Os demais, como Jaime, que é engenheiro civil, nasceram em Sucre. Dizem que aqueles que quando pequenos se banharam no rio dos ovos de dinossauros são mais inteligentes, fantasiosos e rápidos que os outros.

O dia de Garcia Márquez transcorreu em sua casa, um jogo de cubos e quadriláteros vermelhos projetado há mais de dez anos por um arquiteto colombiano.

Telefonaram para ele presidentes, amigos, mas também gente comum. "Castro?" "Sim, Fidel também." "Shakira?" "Não, Shakira ainda não ligou. Mas falamos com freqüência. Vou sempre aos seus shows, quando posso."

O aspecto menos conhecido de Garcia Márquez é sua obsessão pela diplomacia secreta. Como quando foi ver Clinton com uma mensagem de Castro, ou como agora, que se ofereceu de mediador entre a guerrilha e o governo da Colômbia.

Esses são os casos importantes, aqueles que logo chegam aos jornais. Mas seu trabalho diplomático é algo cotidiano, matéria de cada dia. Sempre há alguém que o procura para que intervenha. Assim, há o caso do poeta cubano dissidente para salvar, ou aquele de um colombiano, amigo de amigos, que não consegue visto para os EUA. Ou, como conta no jantar, aquela vez em que um grupo de exilados cubanos em Miami o contatou secretamente para que ajudasse um amigo doente a voltar à ilha, onde "seria tratado melhor que nos EUA".

Ele ama esse poder de mediação que a fama lhe dá, e o exerce sempre que pode. Márquez tem casas em todo o mundo. Na Cidade do México, onde reside a maior parte do ano. Em Bogotá, em Barcelona, em Paris.

Mas é em Cartagena que se sente em casa. Sai com vontade, anda pelas ruelas da cidade antiga, uma jóia de arquitetura colonial onde ambientou "O Amor nos Tempos do Cólera". Cumprimenta a todos, afável e afetuoso como se estivesse tratando com os personagens de seus romances. Por Cartagena passa a Colômbia chique.

E depois de Márquez compraram casas no velho centro personagens como Botero e Julio Iglesias. No final do jantar Jaime presenteia ao irmão uma cópia de "As Mil e Uma Noites", "o livro dos livros, que devo ter lido cem vezes". A dedicatória: "Ao maior 'puta' de Aracataca, de um Gabitero".

"Puta", na gíria local, significa "mamagallo", pessoa que gosta de contradizer e fazer piadas com os outros. "Gabitero" é uma das três coisas nas quais pode se transformar um amante da literatura de Garcia Márquez.

Existem os "Gabofolos", quer dizer, os especialistas; os "Gabofilos", os amantes simples; e os "Gabiteros", os verdadeiros fãs. Com a camisa verde-claro de mangas curtas e o insubstituível paletó leve de xadrez miúdo - Márquez só usa essas roupas -, Gabriel caminha para a porta do restaurante. "Vamos dar uma volta pelo centro", diz, levantando os braços antes que Mercedes intervenha: "Não, Gabito, amanhã. Já está tarde, vamos para casa".

Publicado no UOL Notícias

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