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quinta-feira, 27 de abril de 2006

O fenômeno cultural Bruna Surfistinha

Escrito por Larry Rohter, do New York Times

Ela usa o nome Bruna Surfistinha, e dá novo significado à frase "beijar e contar". Primeiro em um blog que logo se tornou o mais popular do país e agora em seu livro de memórias campeão de vendas, ela excitou brasileiros e tornou-se celebridade com seus relatos gráficos e diários da vida de garota de programa.

Mas não foi apenas seu uso sagaz da Internet que fez de Bruna, cujo nome real é Raquel Pacheco, um fenômeno cultural. Ao vir a público com suas experiências, ela contrariou a convenção e iniciou um debate vigoroso sobre valores e práticas sexuais, revelando um país que nem sempre é tão desinibido quanto o mundo às vezes acredita.

Entrevistada no escritório de seu editor, Raquel, 21, disse que o blog que se tornou seu veículo para a fama surgiu quase por acidente. Mas depois que começou, logo percebeu seu potencial comercial e capacidade de transformá-la de mais uma garota de programa, como são chamadas as prostitutas de alta classe no Brasil, em empresária do erotismo.

"No início, eu só queria extravasar meus sentimentos; nem coloquei uma fotografia ou número de telefone", disse ela. "Eu queria mostrar o que acontece na cabeça de uma garota de programa, e não encontrava nada assim na Net. Eu pensei que, se eu tinha curiosidade, outros também teriam."

Guru sexual

Raquel transformou essa curiosidade em sucesso de vendas com o livro "O Doce Veneno do Escorpião", que fez dela uma espécie de guru sexual. Uma mistura de autobiografia e manual, vendeu mais de 100.000 cópias desde que foi publicado, no ano passado, e acaba de ser traduzido para o espanhol.

Raquel disse que em noites de autógrafo, 80% do público é feminino. Ela não esperava isso porque a maior parte de seus leitores no blog parecia ser masculina, inclusive clientes que "queriam ver como classificava sua performance". Na sua opinião, o alto nível de interesse feminino em suas experiências sexuais reflete um vão no Brasil entre as noções de sexo e a realidade.

"Acho que há muita hipocrisia e um pouco de medo", disse ela. "As brasileiras têm essa imagem sensual, de que ficam à vontade e não têm inibições na cama. Mas todo mundo que mora aqui sabe que não é verdade."

O carnaval e a sensualidade geral que parece permear o ambiente podem dar a impressão de que o Brasil é extraordinariamente permissivo e liberado, especialmente se comparado com outras nações predominantemente católicas. Mas especialistas dizem que a situação verdadeira é muito mais complicada, o que explica tanto o surgimento de Bruna quanto as fortes reações que provocou.

Brasil moralista

"O Brasil é um país de contradições, tanto em relação à sexualidade quanto a qualquer outra coisa", disse Richard Parker, antropólogo da Universidade Columbia, autor de "Bodies, Pleasures and Passions: Sexual Culture in Contemporary Brazil" (corpos, prazeres e paixões: a cultura sexual no Brasil contemporâneo) que deu aulas no país. "Há um espírito de transgressão na vida diária, mas há também muito moralismo."

Como resultado, alguns brasileiros aplaudiram a franqueza de Bruna e dizem que é saudável falar de alguns tabus, como o que ela e alguns especialistas chamam de um gosto nacional pelo sexo anal. Outros criticam sua fama como uma manifestação nociva da economia de mercado e globalização.

"Isso é fruto de um tipo de sociedade na qual as pessoas fazem qualquer coisa por dinheiro, inclusive vender seus corpos para poder comprar um telefone celular", disse Maria Clara Lucchetti Bingemer, colunista de jornal e professora de teologia da Universidade Católica do Rio de Janeiro. "Sempre tivemos prostituição, mas era escondida, proibida. Agora é uma opção profissional como qualquer outra, e isso é verdadeiramente chocante."

Profissão sem glamour

Mas Gabriela Silva Leite, socióloga e ex-prostituta que agora dirige um grupo de defesa de prostitutas, argumenta que essas preocupações são exageradas. "Não é um livro como esse que vai estimular a prostituição, mas a falta de educação e de oportunidades para as mulheres", disse ela. "Não acho que a Bruna glamoriza as coisas. Pelo contrário, você pode ver o livro dela como uma forma de advertência, pois ela fala do ambiente desagradável e de todas as dificuldades que enfrentou."

Parte da controvérsia vem simplesmente do tom direto e desinibido de Raquel sobre seu trabalho. Tradicionalmente, os brasileiros têm simpatia pelas mulheres pobres que vendem o corpo para alimentar os filhos; são vistas como vítimas das claras diferenças sociais e econômicas do país.

Mas Raquel não se encaixa nesse modelo. Ela vem de uma família de classe média e procurou a prostituição por rebeldia diante dos pais rígidos e porque queria ser economicamente independente, disse.

Talvez ofenda alguns o fato de uma mulher falar e se comportar como fazem muitas vezes os homens brasileiros. Roberto da Matta, importante antropólogo e comentador social, observou que apesar da reversão de papel ser parte importante do carnaval, outras áreas da vida brasileira, inclusive relacionamentos sexuais, podem ser rígidas e hierárquicas.

'Não posso abandonar Bruna'

Sob o sistema de machismo que prevalece no Brasil e em outros países latino-americanos, "só o homem tem o direito de comandar sua vida sexual, e esse controle é tido como um atributo básico da masculinidade", explicou. "Então, quando uma mulher jovem, atraente e inteligente aparece e diz que é prostituta, você tem uma total inversão de papéis, deixando os homens frágeis em um terreno onde ela manda, não eles."

Apesar de sua disposição para quebrar tabus, o atual plano de vida de Raquel é convencional. Ela tem um namorado firme com quem espera se casar e está estudando para fazer vestibular para psicologia.

"Ser Bruna foi um papel que deixou uma marca em mim, mas não posso abandoná-la", disse Raquel. "Há pessoas que ainda me chamam de Bruna, e não me incomodo, mas não quero ser ela para o resto da vida."

Tampouco está imune à influência do pudor, um conceito importante na América Latina que combina elementos de modéstia, decência, propriedade e vergonha. Em seu livro, em vez de usar as palavras comumente usadas na rua para descrever os atos e órgãos sexuais, ela só usa as primeiras letras, com pontinhos indicando o que todos já sabem.

"Acho bastante vulgar dizer a palavra toda", explicou. "Mas não queria ser formal, tampouco."

Publicado no UOL Mídia Global.

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