Perplexidade de um morador do Rio
Fernando Gabeira, na Folha Online
Uma pesquisadora do Piauí me fez algumas perguntas sobre identidade nacional. Era uma tese. Temi decepcioná-la ao dizer que "identidade nacional" tinha uma carga de ficção, daí o papel dos romancistas nos países que emergiram do colonialismo. E mais ainda: fui logo dizendo que identidade individual também tem uma carga de ficção, que muitos duvidam de nossa capacidade de colocar muitas determinações e afirmar: isto sou eu.
O tema voltou à minha cabeça com as denúncias de corrupção no Rio e a surpreendente resposta de Garotinho, proclamando sua greve de fome. Percebi em todo o processo um pouco da esquizofrenia da minha vida cotidiana na cidade. Estou lendo "Origem", de Thomas Bernhard, em que ele desanca Salzburgo como a gênese de seus males.
Não posso dizer o mesmo da cidade que escolhi para viver. Gosto de chegar de avião e vê-la lá embaixo, gosto de sentar na Pedra do Arpoador depois de uma longa viagem, andar de sandálias Havaianas e bermudas.
Jamais ignorei que ali existem cemitérios clandestinos, fornos nas pedras onde se assam as pessoas vivas, ônibus incendiados, as labaredas devorando carne inocente. Os únicos representantes do Estado com que falei, polícia e sistema penitenciário, ao longo desse tempo mostram que pelo menos isso não ignorei em nosso convívio social - a violência nas ruas e nas prisões.
Mas esse casal que governa o Rio, Garotinho e Rosinha, me desconcerta. Produz uma espécie de branco. Jamais os critiquei, exceto de passagem; jamais fiz sugestões, enfim, jamais me animei a algum tipo de contato. Eles lá, eu aqui; era como se eu vivesse num outro país, desses em que não importa tanto saber quem governa.
O casal estimula - com sua fórmula cinismo-cheque-cidadão, com sua religiosidade um pouco ingênua - tanto a ironia quanto a estranheza de ter mergulhado nessa depressão histórica, viver num lugar onde se evita a todo custo saber o que fazem os governantes.
De qualquer forma, já não é mais possível andar pelas ruas do Rio ignorando o casal que nos governa, sobretudo agora que está em transe religioso, ameaçando com o peso da mão de Deus, realizando, ainda que na imaginação, um encontro entre igreja e Estado.
Andar de Havaianas e bermudas num mundo surreal, em que Darwin é um jogador reserva, a governadora reza diante do marido em greve de fome, o pau comendo entre os seguranças, os tiroteios noturnos, a dengue e alguém do Piauí a perguntar pela identidade. Só fazendo um samba.
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Enviado por JEO Bruno.
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