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sábado, 30 de setembro de 2006

Sala, cozinha e banheiro

Crônica de Nelson Motta (via e-mail)

Em "O charme discreto da burguesia", o grande mestre Luís Buñuel contrapunha duas cenas surrealistas: num salão elegante, em volta de uma grande mesa, uma dúzia de convidados bebem, conversam e discutem educada e animadamente, todos sentados em vasos sanitários, de calças arriadas e vestidos levantados, fazendo o que neles se faz com naturalidade. Depois, um a um se levantam e se trancam nos banheiros, onde devoram voluptuosamente pratos cheios de carnes sangrentas e gordurosas, restos de comida lhes escorrem pelos cantos da boca, grunhem e rosnam como animais selvagens.

A metáfora bestial é um comentário irônico do mestre sobre a precariedade da condição humana e as hipocrisias da civilização moderna. É o que eles são em essência, o comportamento à mesa é apenas uma representação, onde cada um faz um papel.

Mas até o surrealista Buñuel se surpreenderia com o Brasil real, com tantos homens públicos que são metáforas ambulantes que comem e "descomem" à vista de todos, sem qualquer vergonha de uma coisa ou outra. A burguesia não tem mais o charme dos tempos de Buñuel, a elite sindical que se aboletou à mesa do poder não tem nada de discreta, muito pelo contrário. Há uma grande confusão entre a coisa pública e a privada.

Quando comecei a escrever na Folha, o diretor de redação me deu boas vindas e plena liberdade e fez uma única recomendação: manter a classe, nunca baixar o nível, criticar de "black tie". Resisti sempre, mesmo navegando no mar de lama, mas hoje, revendo a obra-prima de Buñuel, não pude deixar de me lembrar do Brasil e sucumbir
às metáforas fisiológicas do mestre, que são apenas discretas e charmosas diante da escatologia e vulgaridade que dominam a vida pública brasileira.

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