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domingo, 4 de fevereiro de 2007

Dez anos sem Paulo Francis

Hoje é o décimo aniversário da morte de Paulo Francis, que deixou este mundinho cruel em Nova York, no dia 4 de fevereiro de 1997. Por isso, uma pequena homenagem ao enorme talento de um dos formadores do RA, aquele que passou - mesmo sem saber - uma nesga de estilo, forma e conteúdo aos garranchos deste que vos bloga.

Francis por Francis: Não existe nada que eu queira da vida. Atingi um nível de entendimento das coisas que considero satisfatório. Quer dizer, sei que sou ignorante, mas que tenho a base para deixar de ser naquilo que me interessar. O problema é que menos e menos me interesso por tudo. Considero programa ficar num sofá, sem fazer nada, nem lendo. A cabeça corre sozinha, forma conceitos, imagens, contradições, impressões etc. Nada fica ou me estimula ao esforço de completar o sugerido ou iniciado. Será a menopausa intelectual dos 40 anos, ou uma forma (ainda) branda de esquizofrenia?

Francis por Geraldo Galvão Ferraz, da revista CULT: Jornalistas não costumam sobreviver à efêmera vida útil dos jornais, impressos ou de rádio/TV. Seu meio vital é essa coisa ilusória: o fato, a notícia. Paulo Francis, dez anos após sua morte, continua entre nós devido a um material até mais evanescente que a notícia, ou seja, a opinião.

A sobrevida de Paulo Francis tem que ver com a intensidade e a qualidade do que ele escreveu. Com base em uma impressionante e desordenada cultura em grande parte autodidata (ele nunca fez uma faculdade), ele opinou sobre quase tudo. Acertou muito, mas errou muito.

A partir de certa época, quando consolidou seu lugar na imprensa, passou a não dar a menor bola para a exatidão e até mesmo para a coerência. Seus inimigos mantinham uma rotina de trabalho de tanto apontar erros factuais em suas colunas. O trator Francis não ligava a mínima e ia em frente.

Francis por Edney Silvestre: No antigo escritório da TV Globo em Nova York, na Terceira Avenida, o "estúdio" - nada mais do que uma modesta tapadeira pintada, até ser demolido em uma providencial reforma posterior - ficava dentro da redação. Mesmo. Tapadeira, luzes, câmera e fios viviam em incômoda proximidade a monitores de tevê, telefones e máquinas de fax, computadores, salas de edição de imagem, a sala do diretor, a cabine para gravação de locução, uma porta lateral (oficialmente vedada a entradas e saídas) e, evidentemente, as mesas dos repórteres e produtores.

Como acontece em redações do Oiapoque ao Yang-Tsé, ali todos conversavam, digitavam, discutiam, discavam e falavam ao telefone, se chamavam, respondiam, comentavam, criticavam, riam, lamentavam, abriam e fechavam portas e gavetas ininterruptamente, do momento que chegávamos ao momento que saíamos.

Enquanto tudo isso acontecia, Paulo Francis tinha que gravar - direto, sem interrupções - os comentários que fazia diariamente para o Brasil. Francis, ao contrário da maioria dos comentaristas de televisão, jamais tinha um texto preparado com antecedência, nunca leu um teleprompter (aquela máquina que passa o texto em frente à pessoa enquanto a mesma câmera vai registrando a imagem). Talvez até porque fosse profundamente míope. Os óculos que usava na vida real tinham lentes grossas, daquelas que nos bancos escolares do século passado a gente costumava chamar de "fundo de garrafa". Em cena, quase todo mundo sabe, os óculos que colocava no rosto eram vasados, não tinham lentes. Óculos cenográficos, como cabia a quem tinha tanta paixão por teatro.

Francis, simplesmente, subia ao estúdio - faltou contar: ficava uns cinquenta, sessenta centímetros mais alto do que o resto da sala, como um pequeno palco - olhava para a câmera e falava. O tempo que fosse necessário. Dois, tres, cinco, dez minutos - dependendo do entusiasmo com que elogiasse - ou esculhambasse - a situação, o evento, o filme, a peça, o político, o ator, a modelo, a soprano, o maestro, a orquestra, a exposição ou que quer que lhe despertasse interesse.

Francis tinha opinião sobre tudo. Sempre radical. E nunca tão cimentada que não merecesse ser revista. Improvisar? Para ele era tão natural quanto piscar. Mas falar, dentro daquela redação, enquanto as câmeras rodavam, exigia o (quase) impossível: não apenas que todos se calassem, como também que os telefones e faxes não tocassem, que portas não batessem, que campainhas não soassem etc etc.

Até acontecia. Mas não na primeira, na segunda, terceira ou quarta vez. E a cada repetição Francis ficava: a) mais brilhante; b) mais contundente; c) mais colérico com as interrupções. O resultado era uma torrente de palavrões, ditos com intensidade suficiente para abalar o centro de Manhattan.

Cá entre nós, era um espetáculo à parte. Que terminava - quando finalmente o milagre da gravação sem interrupções se fazia - com um baita sorriso dele, como se nada demais tivesse acontecido. Francis, então, descia do estúdio (palco?), pegava suas coisas, punha seus livros embaixo do braço e saía para o mundo. Quase sempre assoviando ou cantarolando algum trecho de música erudita. E, sempre, pela porta proibida.

Francis pela companheira Sônia Nolasco: Ontem acordei com aquela conhecida sensação de perda. Peguei o jornal na porta e fiquei andando pela casa, com ele na mão, sem saber o que fazer. Já devia estar habituada a tristeza que me abate nessa data, quando enfrento o mesmo frio siberiano e as mesmas recordações. Mas pensei que, depois de seis anos, teria mudado. Não tomei conhecimento da nuvenzinha negra que há duas semanas ameaçava meu humor. Ontem de manhã a coisa começou a desabar.

Mas, espera aí... Ao escovar os dentes, já batalhando a inquietação, aquele jingle do passado brotou da minha cabeça, ou o Francis estava mesmo ali na porta do banheiro, cantarolando baixinho, "Três vezes ao ano, visite o dentista, três vezes ao dia, seja kolynosista", para me salvar da depressão matinal?

De repente me deu uma saudável vontade de rir. E rindo olhei a cidade lá embaixo, coisa que o Francis gostava de fazer, e ainda pontificava, "Nova York deve ser vista de cima"; e constatei também que o céu estava totalmente azul, naquele tom que o Francis descreveu como "azul inocente" na manhã seguinte ao bombardeio do Iraque pelos americanos, em 1991.

Tenho que rir. O Francis acordava deprimido, mas já fazia declarações contundentes sobre questões políticas, sociais e culturais, e ainda me fazia rir com sua nostalgia por cultura pop do passado mais remoto. Tinha coragem de continuar. Desafiava a tristeza, diariamente.

Francis por Francis: Gosto que me leiam e saibam o que acho das coisas. É uma forma de existir. Trabalho é a melhor maneira de escapar da realidade.

Mais Paulo Francis aqui.

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2 Comments:

At 4/2/07 18:34, Anonymous Anônimo said...

Oi Cilim (desculpe a intimidade)Fiquei emocionado desta vez. O Paulo Francis era um grande colunista (ou mais que isto: um ícone) do Pasquim, dos meus tempos.
Com uma espécie de epitáfio assim até eu vou pro céu. Eu não sabia é que você erqa um de nós (do fã clube).
Pena que ninguém fica para semente. Ainda bem.
Abração.

 
At 5/2/07 09:59, Anonymous Anônimo said...

Sim, Grande Mestre, sempre fui um grande admirador do grande Paulo Francis, desde o saudoso - e também grande - Pasquim. Gozado que ele sempre me lembrou uma outra grande figura (também saudosa) muito conhecida (entre os carmelitanos, pelo menos): Maurício Eduardo, grande pianista, autodidata, falastrão e polêmico. Se brincar, os dois já se tornaram amigos lá em cima.
Outro abração.

 

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