Dez anos sem Paulo Francis
Hoje é o décimo aniversário da morte de Paulo Francis, que deixou este mundinho cruel em Nova York, no dia 4 de fevereiro de 1997. Por isso, uma pequena homenagem ao enorme talento de um dos formadores do RA, aquele que passou - mesmo sem saber - uma nesga de estilo, forma e conteúdo aos garranchos deste que vos bloga.
Francis por Francis: Não existe nada que eu queira da vida. Atingi um nível de entendimento das coisas que considero satisfatório. Quer dizer, sei que sou ignorante, mas que tenho a base para deixar de ser naquilo que me interessar. O problema é que menos e menos me interesso por tudo. Considero programa ficar num sofá, sem fazer nada, nem lendo. A cabeça corre sozinha, forma conceitos, imagens, contradições, impressões etc. Nada fica ou me estimula ao esforço de completar o sugerido ou iniciado. Será a menopausa intelectual dos 40 anos, ou uma forma (ainda) branda de esquizofrenia?
Francis por Geraldo Galvão Ferraz, da revista CULT: Jornalistas não costumam sobreviver à efêmera vida útil dos jornais, impressos ou de rádio/TV. Seu meio vital é essa coisa ilusória: o fato, a notícia. Paulo Francis, dez anos após sua morte, continua entre nós devido a um material até mais evanescente que a notícia, ou seja, a opinião.
A sobrevida de Paulo Francis tem que ver com a intensidade e a qualidade do que ele escreveu. Com base em uma impressionante e desordenada cultura em grande parte autodidata (ele nunca fez uma faculdade), ele opinou sobre quase tudo. Acertou muito, mas errou muito.
A partir de certa época, quando consolidou seu lugar na imprensa, passou a não dar a menor bola para a exatidão e até mesmo para a coerência. Seus inimigos mantinham uma rotina de trabalho de tanto apontar erros factuais em suas colunas. O trator Francis não ligava a mínima e ia em frente.
Francis por Edney Silvestre: No antigo escritório da TV Globo em Nova York, na Terceira Avenida, o "estúdio" - nada mais do que uma modesta tapadeira pintada, até ser demolido em uma providencial reforma posterior - ficava dentro da redação. Mesmo. Tapadeira, luzes, câmera e fios viviam em incômoda proximidade a monitores de tevê, telefones e máquinas de fax, computadores, salas de edição de imagem, a sala do diretor, a cabine para gravação de locução, uma porta lateral (oficialmente vedada a entradas e saídas) e, evidentemente, as mesas dos repórteres e produtores.
Como acontece em redações do Oiapoque ao Yang-Tsé, ali todos conversavam, digitavam, discutiam, discavam e falavam ao telefone, se chamavam, respondiam, comentavam, criticavam, riam, lamentavam, abriam e fechavam portas e gavetas ininterruptamente, do momento que chegávamos ao momento que saíamos.
Enquanto tudo isso acontecia, Paulo Francis tinha que gravar - direto, sem interrupções - os comentários que fazia diariamente para o Brasil. Francis, ao contrário da maioria dos comentaristas de televisão, jamais tinha um texto preparado com antecedência, nunca leu um teleprompter (aquela máquina que passa o texto em frente à pessoa enquanto a mesma câmera vai registrando a imagem). Talvez até porque fosse profundamente míope. Os óculos que usava na vida real tinham lentes grossas, daquelas que nos bancos escolares do século passado a gente costumava chamar de "fundo de garrafa". Em cena, quase todo mundo sabe, os óculos que colocava no rosto eram vasados, não tinham lentes. Óculos cenográficos, como cabia a quem tinha tanta paixão por teatro.
Francis, simplesmente, subia ao estúdio - faltou contar: ficava uns cinquenta, sessenta centímetros mais alto do que o resto da sala, como um pequeno palco - olhava para a câmera e falava. O tempo que fosse necessário. Dois, tres, cinco, dez minutos - dependendo do entusiasmo com que elogiasse - ou esculhambasse - a situação, o evento, o filme, a peça, o político, o ator, a modelo, a soprano, o maestro, a orquestra, a exposição ou que quer que lhe despertasse interesse.
Francis tinha opinião sobre tudo. Sempre radical. E nunca tão cimentada que não merecesse ser revista. Improvisar? Para ele era tão natural quanto piscar. Mas falar, dentro daquela redação, enquanto as câmeras rodavam, exigia o (quase) impossível: não apenas que todos se calassem, como também que os telefones e faxes não tocassem, que portas não batessem, que campainhas não soassem etc etc.
Até acontecia. Mas não na primeira, na segunda, terceira ou quarta vez. E a cada repetição Francis ficava: a) mais brilhante; b) mais contundente; c) mais colérico com as interrupções. O resultado era uma torrente de palavrões, ditos com intensidade suficiente para abalar o centro de Manhattan.
Cá entre nós, era um espetáculo à parte. Que terminava - quando finalmente o milagre da gravação sem interrupções se fazia - com um baita sorriso dele, como se nada demais tivesse acontecido. Francis, então, descia do estúdio (palco?), pegava suas coisas, punha seus livros embaixo do braço e saía para o mundo. Quase sempre assoviando ou cantarolando algum trecho de música erudita. E, sempre, pela porta proibida.
Francis pela companheira Sônia Nolasco: Ontem acordei com aquela conhecida sensação de perda. Peguei o jornal na porta e fiquei andando pela casa, com ele na mão, sem saber o que fazer. Já devia estar habituada a tristeza que me abate nessa data, quando enfrento o mesmo frio siberiano e as mesmas recordações. Mas pensei que, depois de seis anos, teria mudado. Não tomei conhecimento da nuvenzinha negra que há duas semanas ameaçava meu humor. Ontem de manhã a coisa começou a desabar.
Mas, espera aí... Ao escovar os dentes, já batalhando a inquietação, aquele jingle do passado brotou da minha cabeça, ou o Francis estava mesmo ali na porta do banheiro, cantarolando baixinho, "Três vezes ao ano, visite o dentista, três vezes ao dia, seja kolynosista", para me salvar da depressão matinal?
De repente me deu uma saudável vontade de rir. E rindo olhei a cidade lá embaixo, coisa que o Francis gostava de fazer, e ainda pontificava, "Nova York deve ser vista de cima"; e constatei também que o céu estava totalmente azul, naquele tom que o Francis descreveu como "azul inocente" na manhã seguinte ao bombardeio do Iraque pelos americanos, em 1991.
Tenho que rir. O Francis acordava deprimido, mas já fazia declarações contundentes sobre questões políticas, sociais e culturais, e ainda me fazia rir com sua nostalgia por cultura pop do passado mais remoto. Tinha coragem de continuar. Desafiava a tristeza, diariamente.
Francis por Francis: Gosto que me leiam e saibam o que acho das coisas. É uma forma de existir. Trabalho é a melhor maneira de escapar da realidade.
Mais Paulo Francis aqui.
2 Comments:
Oi Cilim (desculpe a intimidade)Fiquei emocionado desta vez. O Paulo Francis era um grande colunista (ou mais que isto: um ícone) do Pasquim, dos meus tempos.
Com uma espécie de epitáfio assim até eu vou pro céu. Eu não sabia é que você erqa um de nós (do fã clube).
Pena que ninguém fica para semente. Ainda bem.
Abração.
Sim, Grande Mestre, sempre fui um grande admirador do grande Paulo Francis, desde o saudoso - e também grande - Pasquim. Gozado que ele sempre me lembrou uma outra grande figura (também saudosa) muito conhecida (entre os carmelitanos, pelo menos): Maurício Eduardo, grande pianista, autodidata, falastrão e polêmico. Se brincar, os dois já se tornaram amigos lá em cima.
Outro abração.
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