A 'difícil e exclusiva' missão de Ana Paula Padrão
No início do mês, correu a notícia de que a apresentadora Ana Paula Padrão estava embarcando para a Coréia do Norte, onde permaneceria 10 dias realizando matérias especiais - e exclusivas - para o seu telejornal no SBT. Muitos coleguinhas festejaram o acontecimento como se fosse uma grande vitória do jornalismo brasileiro, já que a Coréia do Norte é um dos países mais fechados do mundo. E tome-lhe parabéns à bela Padrão - e ao Sílvio patrão - pelo inédito visto no passaporte, "depois de meses de intensa negociação entre o SBT e o governo comunista norte-coreano", nas palavras do repórter Pedro Venceslau, do Portal Imprensa.
Muito bem. No dia 18 (terça-feira), já de volta da arriscada missão, Ana Paula dá uma entrevista à repórter Andréia Takano do site O Fuxico, contando como tinha sido a viagem:
“Tudo foi muito árduo. Tivemos dificuldade para conseguir o visto. O governo dificulta em muitas coisas. Para se ter uma idéia, assim que chegamos, nossos passaportes foram confiscados. Estávamos em três pessoas - eu, minha editora e um cinegrafista -, éramos vigiados e fomos acompanhados por quatro pessoas ligadas ao governo. Dia e noite. Eles nos seguiam mesmo! Tudo o que queríamos fazer teria de passar por eles. Muitos pedidos meus foram negados, mas posso dizer que conseguimos um material vasto, que poucos jornalistas até hoje conseguiram. Fomos, por exemplo, na fronteira que a Coréia do Norte faz com a Coréia do Sul. Foi impressionante”, conta Ana Paula.
Tudo continuaria muito bem se na última quarta-feira (dia 21), eu não tivesse esbarrado em uma matéria do jornalista Bruce Wallace - no site do Los Angeles Times - entitulada "Coréia do Norte marca o 60º aniversário - A nação festeja e abre a porta para alguns estrangeiros". Bruce também esteve por lá (a exemplo de vários outros jornalistas ocidentais, entre eles, nossa Ana Paula Padrão) e dá a sua versão para a viagem:
"Existe hoje na capital Pyongyang a rara visão de estrangeiros sendo conduzidos dos lobbies dos hotéis aos ônibus de turismo. Um dos mais fechados países da Terra dá as boas vindas a algumas centenas de turistas no Arirang - o seu estádio de shows, música e ginástica - para a celebração de supostas vitórias sobre japoneses e americanos imperialistas. Os presentes de aniversário - eletricidade (ligada provisoriamente para iluminar monumentos e prédios históricos) e convites (para os turistas/jornalistas) - são uma maneira ostensiva de marcar os 60 anos do Partido dos Trabalhadores Coreanos e da família Kim no poder. Mas são também um esforço das lideranças norte-coreanas para fortalecer o controle interno e a imagem externa, quando o país se prepara para mais uma rodada de negociações a respeito de seu discutido programa de armas nucleares."
Alguns parágrafos adiante, Bruce Wallace explica as dificuldades que ele - e todos os colegas jornalistas - enfrentaram para realizar os trabalhos de reportagem (as mesmas enfrentadas por Ana Paula Padrão):
"Kim Jong II não fala sobre os avanços, e os estrangeiros que vivem na Coréia do Norte - algumas poucas centenas - dizem ter só uma tosca leitura das intenções do regime. Visitantes têm uma visão ainda mais limitada, escoltados em quase todos os lugares por vigilantes do governo que determinam para onde as câmeras podem ser apontadas e com quais cidadãos podem falar. 'Todos vão dizer a mesma coisa', diz a guia e intérprete Paek Su Ryon ao grupo de jornalistas ocidentais, enquanto ela se prepara para traduzir mais uma tentativa de fazer um norte-coreano falar".
Resumo da opereta: a "exclusiva" e badalada viagem da Ana Paula Padrão aconteceu graças a um amável convite do ditador Kim Jong II a empresas jornalistícas de diversos países, com a finalidade de mostrar ao mundo os avanços alcançados nos sessenta anos de vida da Coréia do Norte depois da separação da Coréia do Sul. Isso, na minha época de jornal, chamava-se "Famtur", que pode ser traduzido por "viagem de cortesia para jornalistas em troca de matérias de divulgação, de preferência, exaltando os pontos positivos do local visitado".
E aí, cabe a pergunta: porque fazer de conta que a viagem da Padrão foi um grande feito solitário, cheio de perigos e obstáculos, negociado durante meses? É que no jornalismo, tudo o que é exclusivo (ou arriscado ou difícil ou os três juntos) vale mil vezes mais do que um mero diário de viagem em grupo (mesmo para a Coréia do Norte). Sendo assim, como dizer ao público que nos Famturs não existem furos de reportagem, já que (como disse Bruce Wallace) todos ficam juntos o tempo todo, à mercê dos guias (e tradutores) que os acompanham a todos os lugares e só mostram aquilo que deve ser mostrado? Como dizer que o único risco que se corre nessas viagens é o de torcer o pé ao descer do ônibus ou passar mal depois de experimentar um prato exótico num restaurante de luxo (tudo bancado pelos anfitriões)?
É óbvio que toda essa presepada teve como finalidade promover o telejornal SBT Brasil, que não consegue ultrapassar os 10 pontos de audiência, mesmo já tendo mudado de horário uma vez desde a sua estréia no dia 15 de agosto. Mais uma prova de que na acirrada guerra do Ibope vale qualquer coisa, até enganar o público que não tem acesso à verdade escondida nos meandros da Grande Rede.
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