Woody Allen avalia sua obra em livro
Do UOL Cinema
Rotular Woody Allen como o "único autor remanescente no cinema americano" seria uma saída fácil demais para explicar o porque ele é singular. O jornalista Eric Lax, biógrafo do cineasta, escreveu um livro só para isso. "Conversas com Woody Allen" (Cosac & Naify) reúne entrevistas feitas por Lax com o diretor ao longo de 36 anos. O escritor as desmembrou para depois reorganizá-las cronologicamente dentro de capítulos temáticos que percorrem todo o processo criativo do biografado.
Você anota as idéias quando elas vêm?
Anoto, sim, uma porção de piadas quando elas me ocorrem. Sempre fiz isso porque sempre esqueço se não anoto. Ainda tenho uma gaveta cheia de piadas e palpites. Muitos ainda estão em pedaços de papel. (1987)
Anos atrás você me mostrou uma sacola de papel cheia de idéias e roteiros pela metade na gaveta da sua escrivaninha. Ainda tem isso?
Tenho. Tirei o meu pacote de idéias de dentro da sacola onde estava. É uma pilha de papéis soltos, mas prendi com um clipe. Voltei a ela continuamente, quando me vi pressionado por uma idéia para este filme ("Match Point"). Na verdade, este filme é um amálgama de duas idéias que saíram da minha sacola. (2005)
O Dick Cavett me contou, faz pelo menos trinta anos, da noite em que vocês dois estavam no Trader Vic, em Los Angeles, nos anos 60, e você falou para ele no jantar: "Não tenho tempo, por mais longa que seja a minha vida, de escrever todas as idéias que tenho". Você ainda tem um estoque ilimitado?
Eu tenho uma porção de idéias. Ainda tenho a mesma sacola - na verdade, tirei as idéias da sacola porque ela rasgou (ri), mas tenho uma igual. Na sala de montagem, ainda levo uma sacola e jogo as idéias lá dentro, e quando chega a hora de fazer alguma coisa, viro a sacola em cima da cama e cai um bilhão de papéis de todos os tipos, e eu vejo o que tem ali. É muito chato, e separo os mais promissores. Às vezes, eu vejo um e penso: Ah, este daria uma boa idéia, e faço.
Você seleciona as idéias de vez em quando? Joga alguma coisa fora com o passar dos anos? Ou, se entraram na sacola, é porque valem a pena?
Só jogo as idéias fora depois de realizadas. (2006)
Tem uma idéia clara do personagem para o qual você escreve?
Não existe nenhuma moldagem consciente do meu personagem. Eu nunca penso: Bom, ele não faria isto. Em boates e filmes, faço o que acho engraçado, e é cem por cento instintivo. Eu simplesmente sei que não daria um tiro num sujeito e colocaria dentro de um freezer. Eu só faço o que faço, e ao que parece o personagem vem à tona. O que fica além disso não significa nada para mim. Só quero ser engraçado. E se além de ser engraçado der para externar uma opinião, ótimo. Não faço nenhum juízo interior do personagem que vai saindo. Só posso descrever esse personagem em termos do que conheço: contemporâneo, neurótico, mais orientado para a vida intelectual, perdedor, homenzinho, não lida bem com máquinas, deslocado no mundo - essa merda toda. Consigo enxergar uma certa parte, mas no começo nunca pensei: Vou fazer de mim mesmo um perdedor e um homenzinho. Não acho que se possa tentar fazer qualquer coisa. Faz-se, e pronto. Tenho certeza que não há nada calculado no Chaplin, mesmo que as pessoas digam: "Pois é, o bigode representa a vaidade, os sapatos grandes demais, isto; o jeito de andar, aquilo". Tenho certeza que o que ele tinha na cabeça era: Ei, isto aqui vai ser engraçado: vou pôr essa calça larga, esses sapatos grandes, um bigode e vou ficar com cara de tonto. É tão acidental, tão contingente. Ao fazer um filme muita coisa que se planejava não funciona como se pensava que ia funcionar, e na sala de montagem se fazem novas descobertas o tempo todo. Acho que, se não abre espaço para isso, você se transforma num daqueles diretores de cinema literais, que pegam um roteiro e filmam exatamente o roteiro. Não estou dizendo que eu só improviso. Mas a experiência de fazer um filme acontecer quando você faz o filme não é igual à de escrever o filme, enquanto uma peça de teatro é noventa e cinco por cento o texto. (1972)
Os personagens mudam muito depois que você escreve o roteiro?
Escrevo o filme enquanto estou fazendo o filme. Muitas vezes estou lá, sentado com a Juliet Taylor (a diretora de elenco), e ela me fala alguma coisa sobre um personagem que escrevi - digamos, o Peter de Hannah. Depois de muito conversar sobre quem chamar, ela disse: "Que tal o Max von Sydow?". E de repente (estala os dedos) a idéia faz uma luz se acender, e é uma grande idéia. E o papel então (de um pintor dedicado à arte) foi moldado para ele. Ele ficou bem mais velho e muito raivoso. A mesma coisa acontece quando encontramos uma locação maravilhosa. De repente, a cena muda porque o visual é bom. O filme nunca é escrito antes. É uma idéia geral, mas clara o suficiente para fazer o orçamento. (1988)
Existe uma velha máxima de que o diretor precisa se apaixonar pela atriz através da câmera para que o público também se apaixone. Você concorda?
Eu me empenho muito em determinados filmes para ter certeza que estou apresentando a atriz para o público do jeito que imaginei. Me dediquei muito à Christina Ricci em "Igual a Tudo na Vida". Fiz a mesma coisa com a Scarlett em "Match Point". Refiz três vezes a cena em que a Scarlett encontra o Jonathan Rhys-Meyers na mesa de pingue-pongue. (É o primeiro momento em que o público a vê, e a tomada determina de imediato a beleza e a perigosa sexualidade dela, que são centrais na história.) Mudei o cabelo dela, mudei a roupa, mudei o jeito de filmar, eu e o câmera conversamos a respeito. Mas para mim era muito importante apresentar a visão dela do jeito como eu sentia aquela personagem. Então, eu me empenho muito nisso, sim. Claro que às vezes não é preciso, mas outras vezes é importante para o filme que um dos personagens crie impacto. Às vezes, a eficiência da personagem feminina não precisa ser tão dominante, mas, nesses dois filmes, entre outros, a atriz principal precisava ser muito eficaz desde o início. Era preciso mostrar por que o Jason Biggs ficava tão obcecado pela Christina e tão ligado a ela, e agüentava as aventuras dela, e convivia com aquela mãe maluca, e suportava ser enganado o tempo todo. Achei que a Christina tinha uma espécie de traço sexy, bonita, impositiva, que conseguiria fazer com que um sujeito se amarrasse nela. E a mesma coisa com a Scarlett. Mas em "Scoop" ela faz uma seminerd. Não me empenhei nem um pouco em fazer com que ela ficasse sexy. Só tive o cuidado de fazer com que parecesse uma garota de faculdade potencialmente atraente. (2005)
Existem coisas que você faz só para se divertir?
Tem um certo tipo de tomada que fazemos em todos os filmes. Pessoas andando na rua, na direção da câmera, aí elas chegam perto e a câmera começa a subir na dolly (puxada para trás por um membro da equipe). Essa é uma. Outra é com as pessoas andando na calçada, e a câmera está na calçada oposta, paralelamente. Certos clichês eu venho usando ao longo dos anos.
Algum novo?
Bom, nos últimos anos - sempre fiz planos-seqüência - desenvolvi planos-seqüência realmente longos. Não falo daquele tipo de tour de force que os caras fazem com uma Steadicam e que não acabam nunca. Falo da cena em "Igual a Tudo na Vida", com o Jason e a Christina na casa, junto com a Stockard Channing, em que as pessoas entram e saem de campo e as combinações são complicadas. O Jason entra no banheiro e some; a Christina entra e sai de campo; depois o Jason, depois a Stockard; depois o Jason volta; depois não se vê ninguém, porque o Jason está atrás de uma coluna. Passei a coreografar bastante assim nos últimos anos, porque é gostoso e me poupa de fazer coberturas (closes e tomadas de relação; a cena fica completa numa única tomada). Ensaio com o diretor de fotografia a manhã inteira, faço a iluminação complicada e aí paramos para almoçar, voltamos e fazemos a cena, eliminamos sete páginas em cinco minutos. (2005)
Fazer a cena ficar bonita é um dos seus problemas, mas quais são suas outras preocupações?
Fundir bons desempenhos com uma boa história exige grande habilidade. Enorme refinamento. Mas não tem nenhum mistério do ponto de vista técnico. Milhões de pessoas que foram ao cinema a vida inteira poderiam fazer um filme. Tecnicamente, elas são maravilhosas, podem dirigir muito melhor do que eu. Fazem tudo sair lindamente; a fotografia é ótima, os filmes delas são lindos. Mas o que falta a elas, como a muitos diretores de comerciais de televisão que fazem filmes, é que não têm um senso dramático ou um senso de comédia. Por isso é que os filmes do Buñuel podem ser horríveis e ainda assim ser obras-primas, porque o que é absolutamente importante é o conteúdo. Qualquer pedaço de lixo que é lançado parece ótimo, porque o diretor pode sair e contratar um diretor de fotografia de primeira, e um editor de primeira, e todos sabem o que fazer. (1973)
Quando você assiste só aos pedacinhos, primeiro na moviola e agora na tela do computador, tem idéia de como vai ser, ou é difícil saber até ter juntado tudo e olhar o todo?
Quando estou montando (suspira) não faço a menor idéia de como vai ficar. Não. Você está juntando aquilo, é tudo muito auto-elogioso, confiante, seguro, otimista, e aí você vê o que inventou. (Ri, irônico.) E o seu coração pára. Está sempre comprido demais, sempre lento demais. Invariavelmente as coisas que você pensou que eram engraçadas não são muito engraçadas, e coisas que você achou que eram maravilhosas não são maravilhosas, as relações que você pensou que iriam em certa direção não vão. Sabe, tudo o que pode dar errado dá errado, e nada é tão bom quanto você esperava que fosse.
Este é um exemplo de quando você sente que a direção não está à altura?
Não. Não sinto que eu tenha dirigido mal. Sinto que montei bem. Nenhum diretor do mundo teria feito melhor com o material que escrevi. Quer dizer, sim, algumas cenas outros podiam ter feito melhor, e algumas cenas eu fiz do melhor jeito possível. Mas é o texto, quase sempre é o texto. É difícil escrever uma coisa entre uma hora e meia e duas horas de duração que seja interessante, nova, original, convincente e comovente. É aí que todo mundo desiste, e eu também, com certeza. (2005)
Quando está assistindo ao copião ou montando, vêm músicas à sua cabeça? Você anota?
Anoto o tempo inteiro - às vezes, quando começo a filmar no set, penso comigo mesmo: Essa cena vai ficar fantástica se eu usar música clássica, e não jazz. Ou, às vezes, durante a montagem, colocamos a música ao fazer a edição. Quer dizer, não passamos para a cena seguinte até colocar música na que está na máquina. Quando não se faz isso, geralmente é preciso fazer uma porção de retoques depois. Porque na edição de uma cena de perseguição, ou de uma cena de caminhada, ou de uma cena de carro, sem a música você deixa de um tamanho adequado ao silêncio. E aí, de repente, coloca-se uma coisa de Django Reinhardt ou Benny Goodman ao fundo e você pensa: Ah, devia ser três vezes mais longa. É muito decepcionante acabar aqui. Ou vice-versa. Mas também, às vezes, a gente pegou um embalo na montagem, e se não tenho uma música específica na cabeça não vou dizer: "Vamos parar meia hora e descobrir a música perfeita para esta cena". (2006)
Tudo bem. Última pergunta, pelo menos por enquanto. Faça uma avaliação de sua carreira até hoje.
Minha sensação objetiva é que não atingi nada significativo artisticamente. Não digo isso com tristeza, apenas descrevo o que sinto como verdade. Sinto que não dei nenhuma real contribuição ao cinema. Em comparação com contemporâneos como o Scorsese, o Coppola ou o Spielberg, realmente não influenciei ninguém de forma significativa. Quer dizer, muitos dos meus contemporâneos influenciaram jovens diretores. O Stanley Kubrick é um exemplo primordial. Eu não sou nenhum tipo de influência. Por isso é que sempre me pareceu estranho que prestassem tanta atenção em mim ao longo dos anos. Nunca tive um grande público, nunca fiz muito dinheiro, nunca tratei de temas controvertidos nem prestei atenção nenhuma na moda. Os meus filmes não estimularam a opinião do país em temas sociais, políticos ou intelectuais. São filmes modestos, feitos com orçamentos modestos, que produzem lucros extremamente modestos e não abalam de forma alguma o mundo do show business. Não tem jovens diretores correndo para me imitar e fazer filmes do jeito que eu faço. Nunca tive domínio técnico suficiente, ou suficiente profundidade de idéias para fazer ninguém pensar. Sou um piadista do Brooklyn que teve muita sorte. Acho que sou um pouco - sem o gênio especial que ele tinha - como Thelonious Monk no jazz, que era uma coisa à parte. Ninguém realmente tocava como o Thelonious Monk, nem quer tocar, mas, como eu disse, ele tinha gênio, e eu tenho apenas um talento para divertir. (A filosofia artística de Woody também é igual à de Monk, que disse: "Não toque o que o público quer. Toque o que você quer e deixe o público chegar lá".) E eu não sou uma pessoa modesta demais. Quando sou bom, sei apreciar a mim mesmo. Não sou triste, nem confessadamente masoquista a esse respeito, mas sou inteligente o bastante para saber que explorei ao máximo meus dotes limitados, ganhei um bom dinheiro em comparação com o meu pai e, o mais importante, de longe preservei minha saúde. Quando eu era menino, sempre corria para o cinema em busca de um escape - às vezes, via doze ou catorze filmes por semana. E, adulto, consegui viver a minha vida de forma um tanto autocomplacente. Consigo fazer os filmes que quero, e então, durante um ano, posso viver naquele mundo irreal de mulheres bonitas e homens interessantes, situações dramáticas, figurinos, cenários e realidade manipulada. Sem falar em toda a maravilhosa música e em todos os lugares aonde me levou. (Ri.) Ah, e às vezes eu consigo sair com uma das atrizes. O que poderia ser melhor? Escapei para uma vida no cinema do outro lado da câmera, mais que para o lado da platéia. (Faz uma pausa.) É irônico eu fazer filmes e escapistas, mas não é o público que escapa - sou eu. (2005/2006)
Matéria editada e ilustrada pelo RA.
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