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sábado, 3 de dezembro de 2005

'Dickens é duro, mas também sarcástico e irônico'

Roman Polanski, diretor de "Oliver Twist", concede entrevista ao jornal espanhol El País

Roman Polanski (nascido em Paris, em 1933) teve várias vidas. A de jovem iconoclasta que rompeu com os moldes do realismo socialista em "Dois Homens e um Armário" (1958) ou "A Faca na Água" (1962), a de cineasta que uniu o teatro do absurdo e a "nouvelle vague" em "Armadilha do Destino" (Cul-de-Sac, 1966), a do profissional que se adapta a tudo como em "A Dança dos Vampiros" (1967), a de jovem prodígio que renova o gênero - "O Bebê de Rosemary" (1968) - ou lhe presta homenagem - "Chinatown" (1974).

Depois, dramas pessoais o levaram a outro tipo de variações, fosse um estupendo exercício de humor negro em "O Inquilino" (1976), a prática de uma adaptação literária muito elegante - "Tess" (1979) - ou o brilhante discurso autobiográfico camuflado atrás da peripécia de outros: "O Pianista" (2002).

Todos esses feitos foram revelando com o tempo um cineasta cada vez mais clássico, cada vez mais sólido, digno herdeiro de uma transparência narrativa que quase ninguém mais pratica. "Oliver Twist", adaptação da obra de Charles Dickens, é o marco mais recente dessa carreira.

El País - Quem está na origem de "Oliver Twist"? É um projeto de produtor ou um desejo pessoal?

Polanski - Depois de filmar "O Pianista", senti vontade de fazer um filme que fosse para todos os públicos, uma história que instigasse os mais velhos a levar seus filhos ao cinema, e não o contrário, como hoje acontece tantas vezes. Foi minha mulher, Emmanuelle Seigner, quem sugeriu que eu adaptasse um Dickens. Ela sabe como eu gosto do romancista britânico e que sou apaixonado por "Oliver Twist", mas eu resistia, porque o livro já tinha sido adaptado para o cinema. E recentemente, eu acreditava. Mas não era verdade. O musical de Carol Reed é de 1968, quer dizer, há duas gerações sem uma adaptação própria do livro.

EP - Diferentemente da versão de Carol Reed, mas também da de David Lean, de 1948, o senhor inclui uma visita do protagonista à prisão.

Polanski - É verdade, nos filmes anteriores ela foi esquecida, mas está no livro e me parece importante. Quando quero transformar um livro em filme é porque gosto do livro, não porque desejo modificá-lo, mudar coisas. Eu tirei o que correspondia a imperativos comerciais do século 19, a questão folhetinesca, relativa à identidade dos pais de Oliver e o suspense em torno disso, mas a visita à prisão, para ver Fagin, me pareceu muito importante. Aí fica claro que Oliver cresceu, superou uma série de provas, compreende melhor o mundo, mas nem por isso se deixou corromper por ele.

EP - A maneira de tratar os personagens, de dirigir os atores afastando-os de qualquer naturalismo, é muito peculiar.

Polanski - Isso está em Dickens. Preste atenção em sua linguagem, sua maneira de falar, que é muito precisa e justa. Em Dickens há um grande gosto pelo detalhe. Nota-se que ele foi jornalista, que havia feito crônica judiciária, que sabia escutar as pessoas. Os diálogos saem de seu talento para delinear os personagens a partir de seus sotaques, vocabulário, ritmo e ênfase. Toda Londres percebia que ele captava a realidade da época. O romance foi publicado em capítulos e as pessoas se aglomeravam desde a madrugada junto dos quiosques para poder comprar o exemplar seguinte. Dickens é muito duro, mas também sarcástico e irônico, tem muito senso de humor.

EP - O senhor filma quase sem mover a câmera, deixando que os atores respirem...

Polanski - Está me acusando de ser um cineasta acadêmico? Mas sim, pertenço à Academia de Belas Artes. Em "Oliver Twist" há muito pouco "twist", é verdade; os planos não se multiplicam como nesses filmes que parecem saladas de frutas, nem a câmera dança aos saltos e cambalhotas. Há uma história para contar, personagens para fazer existir, um cenário para habitar. E meu trabalho consiste em contar, dar vida e habitar, quer dizer, dirigir. Já sei que quando se faz publicidade filma-se tudo de oito ângulos diferentes, mas no cinema deve-se saber qual é o bom ângulo desde o início e não perder tempo rodando outros. Se você fizer isso, o produtor, mesmo que seja só para justificar o dinheiro gasto, vai querer montar um pouquinho de cada plano.

EP - Dirigir os atores parece ser seu maior prazer e preocupação.

Polanski - Utilizo o roteiro como um manual que serve como modo de fazer. E não se deve perder tempo. Há toda uma equipe que espera, e se não filmar perde-se dinheiro e ganha-se aborrecimento. Isso não significa que eu vá para o set de filmagem com um "story board" embaixo do braço, pois isso seria como andar pelo mundo com uma idéia fixa, sem se interessar pela realidade, que é mais rica do que seus pressupostos. Desenho os planos ou a seqüência só quando incluem efeitos especiais complexos e exigem a participação de muita gente da equipe. Então o esboço permite expressar-se com precisão, é quase obrigatório. Normalmente chego ao set e peço aos atores que mostrem como eles vêem a seqüência. Quase sempre se colocam no lugar adequado. Quando se enganam, eu tenho de interferir. Depois de ver sua pequena representação, decido como planejar. E também é tudo muito rápido, porque não há mil planejamentos possíveis.

EP - Em que medida o drama de Oliver Twist lhe parece contemporâneo?

Polanski - A Londres do século 19 é a maior cidade do mundo e cresce a uma velocidade vertiginosa; todo dia seus limites se alteram, chegam a ela milhares de pessoas que não têm trabalho nem teto, que pensam que ali vão mudar de vida. Essa situação acontece hoje em algumas cidades latino-americanas ou em regiões da Ásia. Um rapaz pode chegar aí sozinho e viver algo muito parecido com o herói de Dickens. Os paralelos com o que existe na atualidade não são impossíveis. É verdade que hoje a tendência seria mostrar outras coisas, mostrar que os meninos se masturbam, que os velhos querem violentá-los e que existem redes de prostituição infantil. Da mesma maneira, hoje a tendência é mostrar a violência em primeiro plano, mas isso não é Dickens, e eu não quis fazê-lo.

EP - O filme é duro porque segue a história, mas não é complacente com a violência.

Polanski - Não me fale de violência! O mais complicado é saber o que fazer com as exigências das companhias de aviação, que depois vão explorar o filme. As internacionais ainda são comedidas, mas as companhias americanas são ridículas. Por exemplo, não queriam que Oliver tivesse sangue nos lábios depois de receber um soco. Nem que se ouvisse o cachorro grunhir depois que Bill Sykes lhe dá um chute. O sangue é uma obsessão. Veja a última versão das aventuras do Zorro: podem trespassar quantos homens quiserem, mas não há sangue. A aviação é a favor de uma violência estéril!

EP - O filme foi rodado quase na totalidade em estúdios checos.

Polanski - Nos de Barradonov. São excelentes. Ali há bons técnicos e gente que sabe construir cenários. Para reconstruir a Londres do século 19, além das descrições do livro usamos os desenhos do alemão Scharff, que conheceu Londres na época, e as gravuras de Gustave Doré, que me agradam muito e têm um clima adequado, embora os detalhes nem sempre sejam confiáveis porque Doré visitou Londres 20 anos depois da época de "Oliver Twist".

Publicado hoje no UOL Mídia Global

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